O Futurismo e o Rompimento com os Cânones da Arte Clássica



Por Giorgia Conceição



A História da Arte no Ocidente está amplamente arraigada nos cânones estabelecidos na Grécia de Platão e Aristóteles. As mais variadas manifestações artísticas possuem, desde aquele momento, os mesmos valores e aspirações. A busca pelo Belo, o Equilíbrio e um profundo desejo de Organização e apreensão da Realidade nunca haviam sido questionados sistematicamente até o advento das Vanguardas Históricas do início do século XX.
Cânone é modo pelo qual o objeto artístico é produzido e posteriormente fruído segundo os valores e o olhar de um grupo social dominante, num determinado momento histórico. É possível, assim, entender o pensamento dominante em cada período da História através de seus objetos canônicos. Para os gregos (que possuíam um enorme apreço pela Organização), eram preciosos na arte o Equilíbrio, a Proporção e o Ritmo que conduzem à Unidade. Platão e Aristóteles divergiam sobre a natureza da realidade (no mundo ideal ou no concreto), mas ambos identificam a Arte por uma aproximação do objeto com o Real.
O primeiro cânone estabelecido no teatro é a Tragédia Grega. Aristóteles descreve na Poética os elementos que considera essenciais ao gênero. Assim como em toda a produção intelectual grega, aqui também encontramos como medida de valor a Unidade. A Obra Trágica é a somatória bem equilibrada das unidades de Ação, Tempo e Lugar, que visa obter a catarse através da imitação de ações e caracteres reais (mimesis).
O cânone das três unidades e a valorização do trágico predominou por longos momentos do Teatro Ocidental, até o final do século XIX. Apenas a partir das grandes transformações em processo no início do século XX (a eletricidade, o cinema, a consolidada produção industrial européia, a corrida armamentista pré–Primeira Grande Guerra) é que a identificação da Arte com o senso de Organização e Unidade começou a ser questionado.
A agitação na Europa naquela virada de século era patente, e os movimentos artísticos não apenas refletiram essa tendência, como foram agentes das mudanças em andamento. A explosão dos movimentos de Vanguarda principalmente na França, Suíça e Itália influenciou a revisão dos paradigmas culturais ocidentais.
O Futurismo foi a primeira vanguarda a questionar a toda a tradição do teatro desde os Gregos. Filippo Tomaso Marinetti (1896-1944), autor dramático italiano de formação essencialmente francesa (nascido na Alexandria, Egito), foi o fundador e animador do movimento. Era um artista profundamente envolvido com as questões de seu tempo. Mantinha amizades com os Simbolistas, com Alfred Jarry e Gordon Craig.
O termo futurismo, que tem o significado de “consciência do futuro”, é anterior à Marinetti, mas é ele que lhe atribui o valor que hoje possui: um movimento que se pretende “antirracional, renovador, otimista, heróico, dinâmico”. As bases do movimento estão descritas no Manifesto Técnico da Literatura Futurista (Milão, 11 de maio de 1912) e complementado em Suplemento ao Manifesto Técnico da Literatura Italiana (Milão, 11 de agosto de 1912). Outro manifesto, mais divulgado por conta de seus polêmicos onze itens, intitula-se Guerra sola igiene del mondo, escrito em 1915. Neste, ficam explícitos tanto o caráter estético quanto o ideológico do movimento:

1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade.
2. Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a revolta.
3. Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento [...], a bofetada e o soco.
4. [...] um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia.
[...]
7. Não há mais beleza senão na luta. Nada de obra–prima sem um caráter agressivo.
[...]
9. Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo[...].
10. Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.

Em relação ao teatro, o movimento futurista desloca o foco do objeto cênico para a ação. O valor que antes se atribuíra aos elementos dramatúrgicos (enredo, personagens, conflito dramático, etc.) passa a residir no ato cênico em si: na presença dos artistas, na intenção de desestruturar as certezas do espectador sobre a arte e a própria vida.

Temos um profundo asco pelo teatro contemporâneo (em verso, prosa e música), porque oscila estupidamente entre a reconstituição histórica (miscelânea ou plágio) e a reprodução fotográfica da nossa vida cotidiana. Teatro minucioso, lento, analítico e diluído, mais digno da idade da lâmpada à gás.

Marinetti denomina o teatro futurista como Teatro Futurista Sintético. A principal característica do estilo é a brevidade das obras, visando a máxima concentração dramática. Para o artista, não há sentido em continuar reproduzindo os modelos clássicos (textos longos, geralmente em verso, escritos em cinco atos e várias cenas...), pois ser brevíssimo é estar em convergência com o espírito do novo século, que é o século da eletricidade, da velocidade, da máquina e dos automóveis.
Uma das razões que levaram os futuristas e, de certa forma, todos os artistas do início do século XX a repensar o lugar e a função do Teatro, foi o advento do Cinema. A película, mediada pela máquina, é muito mais eficiente em reproduzir a realidade cotidiana do que o teatro. Os conceitos de verossimilhança e mimesis no teatro são, portanto, fortemente abalados.
Como encontrar, então, novos sentido e função para o objeto teatral, se a aproximação fiel com a realidade, o olhar para as tradições e o psicologismo não são mais as ambições a serem alcançadas, nem tampouco medidas do valor artístico? A princípio, os futuristas vêem no Teatro de Variedades uma alternativa estética. Marinetti escreve, em 1913, um manifesto exaltando as qualidades futuristas do estilo:

O Teatro de Variedades, nascido entre nós com a eletricidade, não tem, felizmente, nenhuma tradição, nem mestres, nem dogmas, e se nutre da atualidade.
[...] É absolutamente prático, porque se propõe a distrair e divertir o público com efeitos de comicidade, excitação erótica e assombro imaginativo [...].


Além destes elementos, Marinetti ressalta a postura do estilo em relação ao público. Durante um Espetáculo de Variedades, a platéia se contagia com toda a sorte de efeitos utilizados, deixando de ser elemento passivo ou mera voyer, tornando-se ela mesma parte da cena. Ao radicalizar a questão do envolvimento com o espectador, o artista propõe que os espetáculos futuristas abalem a estabilidade e até mesmo a segurança do público:

[...] Algumas propostas ao acaso: colocar uma forte cola sobre algumas poltronas, para que o espectador fique grudado e suscite a hilariedade geral. [...] Vender o mesmo lugar a dez pessoas, e então causar confusões, disputas e discussões. Oferecer lugares gratuitos a senhores e senhoras notoriamente loucos, irritáveis ou excêntricos, que já tenham provocado alvoroço, com gestos obscenos, beliscões nas mulheres ou outras extravagâncias. Espalhar nas poltronas algum pó que provoque comichões, etc.

Observamos que o embate e a violência são utilizados deliberadamente pelos futuristas como metodologia estética. Já estão presentes desde o primeiro manifesto, e seguem sendo as diretrizes do movimento. Em relação ao teatro, toda esta pulsão entrópica - acrescida da idéia das peças-síntese - conduz a uma inevitável explosão da cena clássica.
A completa aversão futurista à conservação dos costumes e tradicionalismo já evidencia o antagonismo ao teatro aristotélico. Somando a estas questões o completo horror ao “passadismo”, mais o gosto pela violência e ataque, a cena futurista afasta-se totalmente dos ideais de coerência, organização e unidade. A aproximação é com a velocidade, simultaneidade e o risco. No manifesto sobre o Teatro Sintético Futurista, Marinetti esclarece:

Com nosso movimento sintetista no teatro, nós queremos destruir a técnica, que desde os gregos até hoje, em vez de simplificar-se, tornou-se mais dogmática, estupidamente lógica, meticulosa, pedante e sufocante.


As leituras de manifestos eram demasiado cênicas. Todos os elementos do Teatro Sintético também estavam presentes nestes saraus. As apresentações de artistas da literatura, música, artes plásticas e teatro num mesmo local, todos expondo idéias simultaneamente, causavam já a sensação cênica, apoiada no valor inestimável da ação.
A experiência futurista adianta muitas das características dos experimentos teatrais do século XX. Não será, porém, na Itália fascista que as sementes do movimento irão florescer. A obra do encenador russo Meyerhold, por exemplo, tem no movimento italiano grande correspondência. E, apesar de mais livres de conceitos tão dogmáticos, os movimentos Dadá e Surrealismo são continuadores da pesquisa futurista.
O advento das guerras mundiais encerra, de certa forma, a velocidade das pesquisas de vanguarda na Europa. Porém, muitos artistas transferem-se para os Estados Unidos. É no continente americano que se consolidam as pesquisas iniciadas pelos futuristas italianos.
O acréscimo da medida de entropia às manifestações cênicas leva a novas construções, já totalmente desapegadas da função clássica do teatro: os happenings, a body art, a environmental art, a performance art (entre outros) – gêneros crucialmente contemporâneos, representantes da mais fecunda produção artística de meados do século XX e início do século XXI – e que necessitam de outros métodos de leitura (criação, fruição, análise e vivência), radicalmente distintos dos utilizados para a cena tradicional.
O Futurismo lançou, ao mesmo tempo, o impulso para a revisão e implosão das velhas fórmulas e para a criação de novas e inspiradas modalidades artísticas, bem como a necessidade de uma nova e atenta instrumentalização para a leitura e valoração do fenômeno artístico.






BIBLIOGRAFIA


CEBALLOS, Edgar (seleção e notas). Principios de dirección escénica. Coleção Escenologia. México: EC, 1999.

COHEN, Renato. Performance como linguagem. 1a Edição. 1a Reimpressão. São Paulo: Perspectiva, 2002.

HELENA, Lucia. Modernismo Brasileiro e Vanguarda. São Paulo: Ática, 1986.

OSTROWER, Fayga. Universos da arte. Rio de Janeiro: Campus, 1983.

1 comentários:

Anônimo disse...

Excelente!

 

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