Brasil Século XIX



ANTONIO - A mulher não foi feita de uma costela do homem?
DOUTOR - Foi.
ANTONIO - A costela é o emblema do descanso. Portanto, a mulher não foi feita para a calaçaria das ruas.
ESMERALDA - Para que foi então?
ANASTÁCIO - Ele tem razão. O verdadeiro lugar da mulher é no centro da família.
ESMERALDA - Não se entusiasmem tanto. Ainda temos um recurso. Aguardemos a Constituinte!
Josefina Álvares de Azevedo
O Voto Feminino

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B: Só um problema: a virada. Muitas vezes eu achava, enquanto estava tentando a virada - eu achava que era mais rápido continuar em frente, dar a volta ao mundo. Até o dia em que descobri que podia voltar pra casa de marcha-à-ré. (Pausa.) Por exemplo, eu estou em A. (Se empurra um pouco pra frente, pára.) Eu me empurro pra B. (Se empurra um pouco pra trás, pára.) E volto pra A. (Com elán.) A linha reta! O espaço livre! (Pausa.) Começo a te comover?


(Coisas e Loisas, SAMUEL BECKETT)


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ENRIQUECIDO COM VITAMINAS E FERRO

Por Henrique Saidel



PARTE i

Por que falar justamente da artificialidade? Existirá, realmente, uma oposição clara entre natural e artificial? Não será, por acaso, parte da natureza a transformação dela mesma em objeto artificial? Partimos aqui, porém, do pressuposto que o artificial é uma imitação, reles, do natural. Uma imitação de superfície, destituída de caracteres íntimos e particulares. Kitsch.
A nossa vida está polvilhada, untada de elementos artificiais. A melodia doce e enjoativa do kitsch embala nosso dia-a-dia. O que não quer ser, apenas parecer ser. Casca, superfície, simulacro. O aparente. Nesse raciocínio, os objetos infláveis talvez sejam os mais emblemáticos. Feitos geralmente de plástico, eles não possuem forma específica, no primeiro momento. É necessário que alguém o pegue, sopre no buraquinho, e o encha de ar. Só então ele adquire sua forma final. E esta forma é, quase sempre, uma imitação (visual) de outra coisa, outro objeto, outro ser. O ente inflável necessita, portanto, de um estímulo a mais. Ele, em sua forma final, não é apenas plástico (impessoal) – é plástico preenchido pelo ar (respirado, organicizado) de quem o encheu. Possui, então, uma dupla “natureza”, um duplo gênese. Por outro lado, apesar de robusto, rijo e corado, o objeto inflável é carente de qualquer recheio (nem isopor, nem pano, nem plástico) palpável. É única e exclusivamente casca.
Qual é o fascínio, então, que esses objetos exercem sobre nós? Por que imitar?
O próprio teatro não seria uma mera imitação da natureza? Questionar o kitsch é questionar o próprio teatro – seremos tão implosivos assim? Escancarar o artificial, a simulação barata do teatro barato. Brincar com a expectativa barata dos espectadores (e mesmo criadores) baratos. Artistas infláveis. Teatro inflável. Teatro para microondas. Personagens, diálogos, espaço específico (palco, etc), trama começo, fim. Quando há regras a cumprir, revertê-las em material fértil para a sua própria contradição. Não há riscos no teatro inflável. Apenas o risco de o ar escapar.
PARTE ii
Enriquecido Com Vitaminas e Ferro infla-se e brinca, explicitamente, com esses objetos igualmente infláveis. A poesia do óbvio; o conflito surdo (mudo) daquilo que poderia ser com aquilo que parece ser. Ações desconexas (?) num tempo curto (15 minutos) construindo um estado suspenso – artificial – onde surgem as interjeições desse ser falso (ator). Uma dança estática dos signos, que disputam a todo instante a própria supremacia sobre os demais.
Tudo é ternamente falso, aparente. Não uma busca pelo sentido interior, estofo inexistente do envoltório. Sim um desvelamento nem sempre sutil das próprias propriedades ilusórias. O efeito, a surpresa, a beleza fácil e primária.
Objetos comuns, encontrados em lojas de 1,99, que fazem parte do cotidiano urbano da massa, que, colocados em cena, ganham uma camada a mais de inutilidade e artificialismo: a camada teatral. A criação de uma natureza kitsch. Animais infláveis, flores de plástico, bebedouros de beija-flor. Bizarra biosfera de plástico, que aparece em uníssono, incoerentemente densa e bela. O tom macio e incisivo é mexido ao longo por interferências na ordem inicial. Acúmulos e redundâncias.
Ações simples, beirando a não-interpretação, ou por vezes resvalando a canastrice kitsch dos grandes e verdadeiros atores (assim são chamados). O atuante como elemento tendencioso, deflagrando certas construções de sentido, e sendo enredado por outras. A tranqüilidade cínica, o deixar-se atuar, a contracena enviesada são os pontos centrais do trabalho dos atuantes.
Em meio a isso tudo, o aparecimento de um trecho de “Fim de Partida” de Samuel Beckett. Os personagens (Clov e Hamm), isolados num cenário pós-hecatombe, divagam sobre as suas condições (e as suas relações com a natureza. E vice-versa.). Citação relocalizada – deslocalizada –, o texto de Beckett atua cinicamente contracenando com a situação patética do espetáculo inteiro.
Enriquecido Com Vitaminas e Ferro é, em última instância, uma multi-seqüência de imagens e construções imagéticas que versam frivolamente sobre a própria ausência de sentido e profundidade.

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Incisura na Crítica


por Léo Glück
Acabo de ler o malfadado livro Desconstruir Duchamp: Arte Na Hora Da Revisão, do também malfadado teórico Affonso Romano de Sant’Anna (percebam que o erro na vida do sujeito começa pelo nome). É óbvio que eu ri muito. Do simples fato de imaginar que uma pessoa se ponha, ainda hoje, em um mundo tão globalizado, a jogar tanto vocabulário e papel fora. Um ou outro artigo do livro é compreensível, admito. Porque é compreensível que a arte contemporânea (sempre citada entre aspas pelo escritor) gere, desde sempre, polêmicas, chamejantes discursos, afeições e repúdios infindáveis. Como a arte de qualquer tempo, diga-se de passagem, pois que a arte dos tempos idos um dia foi contemporânea, se bem me lembro. Mas daí a reunir inúmeros artigos em um livro de duzentas páginas para um assunto esgotado na epígrafe, me pareceu ousado demais.Devo, aliás, apesar dos grotescos erros de português da edição, parabenizar a Vieira & Lent Casa Editorial Ltda. por essa empreitada tão “vanguardista” e esclarecedora.
O escritor, já velho, escreve velhamente suas velhas teorias sobre velhos movimentos e velhos artistas. Há mais sentido e proficuidade na produção artística de Duchamp, cuja obra baseava-se em seu tempo, do que ler um livro que tenta tratar de um assunto que não pertence ao escritor. Para escrever sobre algo não basta acreditar que o assunto está dominado. Simples assim.
O senhor escritor Affonso Romano de Sant’Anna (cristão e amantíssimo de Duchamp, ao que tudo indica) não é nenhum artista (sua fracassada poesia não chega a contar) e, recalcado, tenta atacar uma arte tão consolidada e irrevogável quanto o próprio sol, a lua, os cegos, os mudos e o asfalto. Coisas bem velhas, por sinal. As vanguardas artísticas do século XX e a arte contemporânea, em geral, têm os seus conceitos já envelhecidos, empedernidos e, pasmem, ultrapassados.Não há nada de errado em ser antigo. Dito isto, há que se lembrar que também não há nada de errado em ser contemporâneo. O velho conflito de gerações ataca novamente. Penso que deva existir a hora em que as gerações mais enrugadas e inchadas precisem, sim, passar o bastão e/ou largar o osso. Por amor próprio e por amor ao seu legado artístico. Já que, segundo Ionesco, o humanismo caducou, é necessário que as próprias gerações percebam que estão caducando (mesmo que isto configure um paradoxo, já que é justamente pelo fato da coisa ter caducado que ela não nota que caducou), sem que ninguém precise alertá-las, como manda a boa educação. Caso contrário, viverão (e viveremos) sua indigência mental e sua total falta de dignidade.
Quero crer que não quererá o senhor escritor ser ele próprio o messias a tentar separar o joio do trigo, a dizer o que é e o que deixa de ser arte. Talvez ele seja romântico ao extremo, talvez chore vendo Van Gogh, talvez chore vendo telenovelas. Talvez pense que o que ele pensa sobre arte contemporânea impedirá ou modificará o curso da arte contemporânea. Talvez seja um completo parvo. Mas ainda assim, não basta que passeie pelos museus, tire fotinhos ridículas (e as deixe publicar depois), identifique e observe as obras, leia, releia e perfure de tanto reler os clássicos, dê seu sangue pelo flácido ponto de vista que sustenta. Nada disso basta para que ele pense que pode escrever sobre aquilo que ele mesmo não pode fazer. Falta-lhe autocrítica, falta-lhe real inserção no mundo atual. Ou será que pretende que retornemos ao barroco, puro e original?
O marketing é a mais eficaz mídia do nosso tempo. Inútil negar. As relações (ou seriam correlações?) entre arte, capital e mercado do nosso tempo operam em esferas semelhantes, se não idênticas. E não são excludentes. Sua interatividade é necessária e nos interessa. Elas somente existirão no mundo atual assim. Não adianta nostalgia tardia. Sei que o senhor tentou inscrever o seu nome na história — a fotografia no Museu D’Orsay fala por si mesma — mas a história, assim como a sua categoria judicativa de pensamento, morreu mesmo. De desgosto. A arte é maior do que aquilo que pensam dela. É independente e cruel mas é por isso que é arte. Ela não existe para resistir à análise técnica, para revelar conhecimento algum de sua própria história, para mostrar qualquer força de pensamento teórico e tampouco para reordenar caos nenhum. A arte não pede renúncia a nada, inteligência ou sensibilidade. Por que dar a ela um papel que não lhe cabe?
Senhor escritor incipiente, percebo que a diferença entre a roda da bicicleta, a lata de merda e a tua “obra de arte” favorita está na lágrima — o corpo não seca depois que morre? — que mareja o TEU, e somente o TEU, olho. Duchamp e seu urinol permanecerão (são os dedos que vão embora e não os anéis), senhor Affonso Romano de Sant’Anna, e você?
De você, already ready-dead, não sobrará nem lata de merda nem privada.

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