Sobre REBECCA, por Léo Glück

Companhia Silenciosa - Conceitos e Práticas
A Companhia Silenciosa, ativa desde 2002, vem desenvolvendo e praticando pesquisa na área das artes cênicas curitibanas contemporâneas sob o foco de quatro norteadoras temáticas capitais; são elas ironia, territorialidade, infiltração e presença.
Em todos os seus trabalhos, percebe-se que a Companhia não procura o moto perpétuo ou a continuidade de um gesto ilimitado. Em cada fração de suas obras, o principal conceito é o de que não há como movimentar-se sem passar pela condição de repouso. Da mesma forma, não há como falar sem silenciar.

REBECCA e seu objetivo comunicativo
O espetáculo pretende acelerar qualitativamente a discussão sobre a língua portuguesa desde sua etimologia até seu uso fracassado. Como não nos apropriamos dos bens naturais do idioma e até inserimos vocábulos estrangeiros fora de seu contexto original, formulando, assim, uma comunicação excrescente e superpopulosa. Apesar de sua multilinearidade, a cultura vocabular passa, daí em diante, a dar mostras de sofrimento precoce (já que não é dominada mesmo em sua parcialidade e reflete apenas a utilização ligeira e equivocada dos agrupamentos fáceis) e nem mesmo corresponder à realidade de suas inflexões. Trata-se do famigerado problema da incomunicabilidade — apesar do recente estabelecimento de nós e redes digitais, que apuram a transmissão da informação sem analisar seu conteúdo ou mesmo saber como transmiti-lo — , desta vez visto por outro ângulo, que não o da palavra dita.
Desta vez, pura e simplesmente a palavra escrita serve de parâmetro para acentuar as necessidades (ou falta delas) de um povo que sequer toma conhecimento da própria língua.
Não é de hoje que o idioma português sofre grotescas deformações porque as culturas políticas e econômicas (in)existentes nesse país não se dignam ensiná-lo ou, ainda, estabelecer um primeiro contato entre ele e a boca que o falará.

REBECCA e o humor
O critério das unidades aristotélicas, aparecendo em último plano, empalidece até tornar-se irrelevante e indistinto; as análises sociopsicológicas em REBECCA marcam o primeiro embate entre obra e público, no que se refere ao status moral e social das possíveis personagens, identificando-as como tipos opostos, homogêneos e, por isto mesmo, complementares.
Neste espetáculo, o humor, entendido como uma variante da espirituosidade, da requintada atividade de jogar com palavras e idéias, visa o riso inteligente do espectador, atrai todo o mérito crítico devido a sua identidade, ou seja, ao seu afastamento das exigências do corpo.
Esse corpo, por sua vez, tornado quase transparente, veículo diáfano de preciosos conteúdos morais, intelectuais, espirituais, é a imagem dramatúrgica mais afastada da espessa corporalidade dos agentes cômicos e só é visto em si, como corpo, quando a obra o coloca a nu e chama para si a mais rasteira de suas possibilidades: a de despir-se. A visibilidade desse corpo provoca reflexões sobre o papel que vem sendo assumido por essa categoria de corpos, sem que, para esse assunto específico, sejam necessárias tortuosas e arbitrárias dissertações.
“Por apresentar um aspecto pontual, de flash, por surgir da súbita iluminação do espírito (wit, Witz, esprit), o humor tende a aparecer, no contexto de uma seqüência de diálogos, em geral mesclado e dissolvido em outras espécies de estratégias cômicas.” (CLEISE MENDES in: A Força Cômica.)

REBECCA e o estranhamento
A arte e a comunicação, com as devidas proporções, são simultaneamente estranhamento e reconhecimento, porque não se pode experimentar o estranhamento enquanto tal, a não ser no abismo da angústia existencial. Numa atividade qualquer, é preciso estar referido a um padrão para poder desviar-se dele. Faz-se mister esta atividade de errância.
Do ponto de vista da experiência estética, o procedimento construtivo é o que menos importa, se não tem em mente os resultados, os efeitos e o grau de vigência de uma determinada obra.
Um bom equívoco a ser citado quanto a isso, embora mais grave, é o de supor que a cultura contemporânea instaurou uma estética do fragmento, uma estética da fuga ou da desaparição, por ser a época em que as formas de expressão dominantes no âmbito das poéticas audiovisuais, auxiliadas pelo processamento digital da informação, apelam para a fragmentação e a velocidade.
Como um flâneur urbano e sintomático, cujo ato de andar é o mesmo de tomar posse, de marcar simbolicamente o seu espaço, o espectador está livre para fazer apropriações silenciosas, minúsculas e banais do cotidiano, praticar subversão intersticial, com possibilidades de se locomover escrevendo pequenas histórias.
Perceber o mundo é viver a experiência da unidade na diversidade.

REBECCA e suas personagens
Toda ação é também uma interpelação e, quando nos dirigimos a alguém, por mais singular que seja o nosso gesto ou o nosso discurso para nosso interlocutor imediato, supomos que ele partilhe conosco algo que precede esse encontro. No plano verbal, é toda a história da língua, sedimentada numa estrutura sintática e num léxico, que funciona, num determinado domínio cultural, como um padrão virtual, sem o qual as mensagens efetivas não podem circular. Sem essa dimensão presente, porém invisível, que é a gramática, a fala não seria possível; por isso, a ação de falar depende não só da iniciativa do falante, mas também da passividade com que ele se submete à gramática que está virtualmente presente e que, se lhe permite dizer o que quer, também o obriga a dizê-lo de um modo determinado.
David e Francis estabelecem uma relação tardia e caduca, baseada nas generalidades da afetividade humana e na impressão (talvez falsa) de que o mundo perdeu-se em seus próprios mecanicismos e truques. É daí que surgem os questionamentos — mesmo lingüísticos e metalingüísticos — que os intrigam; o término da sensibilidade da galáxia sob a ótica do idioma, inteiro ele próprio em desuso.
O fim como mola propulsora.

(Veja a entrevista de Léo Glück sobre REBECCA em http://www.youtube.com/watch?v=HizgxYfGf2U)
Main Source:
Temas Em Contemporaneidade, Imaginário E Teatralidade / organizado por Armindo Bião, Antonia Pereira, Luiz Cláudio Cajaíba, Renata Pitombo. — São Paulo: Annablume: Salvador: GIPE-CIT, 2000.

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