Cancros Sociais e O Voto Feminino

dois exemplos da diversidade dramatúrgica brasileira no século XIX
por giorgia conceição
Ao realizar uma comparação entre Cancros Sociais, de Maria Angélica Ribeiro, e O Voto Feminino, de Josefina Álvares de Azevedo, podemos observar dois vieses estéticos e ideológicos distintos. Em Ribeiro, observamos uma escrita que deliberadamente se apropria do padrão canônico vigente - o drama sério, inflado pelo ideal da burguesia, presumido moralizador da sociedade. Azevedo (a talvez bastarda), bem menos comportada, prefere escrever uma comédia ligeira de um ato, e sua única apresentação ao público explicita que o riso pode arrebatar a seriedade.
Trata-se de dois exemplos de teatro de cunho engajado, cada um a seu modo. Maria Angélica segue a idéia de que o teatro deve ser não só espelho, como um modelo da sociedade, focando, portanto, na questão dos costumes. Apesar de em Cancros Sociais haver um paralelo com a data da Independência do Brasil, o acontecimento político é usado como pano de fundo, destacando-se em primeiro plano a questão moral da família e o amor atávico da mãe pelo filho. A escravidão é colocada no texto também sob o viés moral, já que é o fator que impede o pleno gozo das relações familiares – Marta é afastada de seu filho quando os dois são vendidos separadamente, por força do vilão do enredo, o Visconde de Medeiros. Ou seja, a escravidão não é um problema porque separa a humanidade em dominadores e dominados, mas porque esta separação impede o exercício do convívio familiar, da formação da família nuclear, no caso narrado pela autora. A todo o instante, a figura da mãe mártir é enaltecida, pois mesmo quando Eugênio a rejeita, ela aceita com paciência e passividade.
A obra é repleta de diálogos que versam sobre a moral, os costumes, e as recompensas para aqueles que respeitarem estas regras “naturais” de conduta. Os que não o fizerem, no entanto, encontrarão em seu destino somente reveses e sofrimento. A ação tem seu desfecho com uma fala do personagem Barão de Maragugipe, imagem do bom homem, exemplo de patriarca:


Barão: (Sentencioso) Não, minha senhora! Para onde quer que vá o criminoso, vão também com ele a consciência da culpa, e as tribulações do remorso!... Ainda que a impunidade social pareça protegê-lo, a alma do criminoso, despojada da luz do céu, já não pode gozar o menor sossego na terra. Ela vê que ao descer doo mundo, lá a espera, implacável, no altar supremo da verdade, a condenação divina. (Solene) Eis aqui a diferença: enquanto Antônio Forbes, castigado, busca remir-se pelo arrependimento; enquanto o Visconde de Medeiros afronta a sociedade com um novo crime, fugindo à reprovação da moral e da justiça; aqui, ao lado da virtude, que se enobrece pelo martírio e pela fé, contempla-se nos benéficos laços da família, e no santo amor de mãe: O QUADRO DA VERDADEIRA FELICIDADE!
(Rompe ao fundo o Hino da Independência).


Ao final, bem como em todo o resto, não há referências à igualdade das raças ou dos sexos; só há a distinção entre os bons e os maus, aqueles que adotam o modelo da ética cristã familiar, e aqueles que a rompem. Maniqueísmo claro. A igualdade entre Marta e os outros, está no fato de ela ser uma mãe devotada; Eduardo é bom pai, bom negociante e, para ser totalmente digno, precisa reconhecer sua mãe. E assim todo o mal naquela família é dissolvido.
Falemos de Josefina. Ela, ao contrário de Maria Angélica, não era uma profissional do teatro. Sabe-se pouco sobre ela: que foi professora, que tinha um jornal, que era mulata, e que talvez fosse parente ou irmã bastarda de Álvares de Azevedo. Sua única peça, O Voto Feminino, é uma forma de expressão das suas idéias sobre o papel da mulher na sociedade brasileira em formação. Engaja-se no movimento sufragista feminino, e isto desde o título é muito claro.
A escolha estética de Josefina é bem distinta da de Maria Angélica, pois seu objetivo é mais pragmático e direto. Ele escreve uma peça cômica de um ato, com a finalidade de esclarecer a população sobre a igual condição da mulher e do homem de votarem e serem votados. Através da crítica e da sátira, ela insufla suas contemporâneas a mobilizarem-se pela causa, e a ficarem atentas para o fato de os homens não compartilharem desse interesse.


Inês: Que bonito futuro está reservado à nossa filha!
Anastácio: Se for uma boa mãe de família...
Inês: Há de ser; e também uma das melhores figuras da nossa política...
Anastácio: Que diz?
Inês: Se passar a lei...
Anastácio: Ó senhora, eu já lhe disse que não se meta a mulher na política!
Inês: Quê! Não meter na política! Oh! Sr. Anastácio, a mulher não é porventura um ser humano, perfeitamente igual ao homem?
Anastácio: (com calma) Sei lá! O que sei é que a política não foi feita pra ela. A mulher metida na política, santo Deus!... Não me quero incomodar, Sra. D. Inês. Vou à chácara tomar um pouco de ar fresco. Até já. (sai).



Como neste diálogo, os personagens masculinos são colocados pela autora como intransigentes e truculentos, além de não terem argumentos racionais contra a inclusão da mulher na vida política. Apenas falam de moral e deveres tradicionalmente incumbidos ao sexo feminino, sempre fugindo à discussão.
Azevedo coloca a questão de forma divertida, usando pequenos números de canto ao desenrolar da peça, e satirizando as posições tradicionais dos chefes de família. Anastácio repete incessantemente o seu indignado “ora, figa!”, demonstrando sua falta de argumentação contra o direito feminino. Observemos que o caráter político desta peça seria utilizado posteriormente no país apenas pelos grupos teatrais na época da ditadura militar, na década de sessenta.
Tanto em Cancros Sociais como em O Voto Feminino, percebemos uma maturidade estética em relação à dramaturgia produzida no Brasil no século XIX. Maria Angélica, por exemplo, consegue dar uma perspectiva à personagem Marta - num rico diálogo com a peça Mãe, de José de Alencar, na qual a mãe escrava morre ao final, sem ter havido uma solução para o problema. Já Josefina dialoga com o teatro musicado e com as operetas, construindo uma sátira a partir do gosto popular, para tocar num assunto tabu para a sociedade brasileira.
As duas obras são amostras da diversidade da produção dramatúrgica feminina no Brasil. Muito distintos entre si na forma e estrutura, como também nos objetivos, estes textos nos permitem uma reflexão sobre a produção literária para teatro no país, escassa em publicações e divulgação, mas fértil e diversificada. E se este gênero literário já traz em si ares de marginalidade, é forçoso pensar que as obras de autoria feminina foram historicamente deixadas à margem da margem, já que Josefina Álvares de Azevedo e Maria Angélica Ribeiro não constam nas bibliografias recorrentes sobre a História do Teatro Brasileiro.

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