ENRIQUECIDO COM VITAMINAS E FERRO.

Roteiro de Henrique Saidel.




Cortina fechada. No canto direito do proscênio, um quadro, um pintura de uma fresca e bucólica paisagem. Entra a ATRIZ, senta no banquinho ao lado do quadro. Sorri, e fala para a plátéia.

ATRIZ: É muito fácil. Açúcar... (Põe um pouco de açúcar num recipiente de plástico.) E água!...

Põe um pouco de água no recipiente. Fecha o recipiente – um bebedouro de beija-flor – e pendura-o em frente à tela, como que querendo fazer parte da mesma. Olha a platéia, e dá uma piscadinha.
Apaga a luz. Abre a cortina. Luz. Mesa, mais à frente e mais à esquerda. Nela, volumes cobertos por um pano. No fundo, mais à direita, o ATOR, ensimesmado, executa alguma ação ordinária e repetitiva, como tomar sopa, brincar de iô-iô, estourar bola de chiclete, costurar, ou similar. Continuará com a mesma ação durante quase todo o tempo. Vem a ATRIZ, da coxia direita. Vai até a mesa. Breve pausa. Traz uma grande escada. Sobe um degrau. Retira o pano com cuidado. Três animais infláveis. Desce do degrau, observa-os, observa-os mais um pouco. Indigna-se. Não, não está nada certo. Vai até a mesa, pega um deles, e, com uma faca, estraçalha o animal. Olha os outros dois, ameaçadora. Desiste. Põe a mão no bolso, tira um plástico amorfo, leva-o à boca e enche-o, com prazer. Surge, então, um animal inflável exatamente igual ao estraçalhado. Coloca o novo animal no lugar vazio deixado pelo anterior. Pega os três animais, coloca-os um em cada extremo da mesa, voltados um para o outro. No meio da mesa, uma pequena caixa fechada. A ATRIZ sobe na escada, até ficar numa distância que não alcance a pequena caixa com as mãos. Com um pauzinho, um espeto (ganchinho das finanças), tira a tampa da pequena caixa. Dentro da pequena caixa, um lindo ramalhete de flores artificiais brancas. No exato momento, inicia-se a gravação. A ATRIZ contracena com a gravação, como se a voz em off, seu interlocutor fosse o ATOR.

HAMMATRIZ: Sente em cima dele.
CLOVATOR: Não posso me sentar.
HAMMATRIZ: É verdade. E eu não posso ficar em pé.
CLOVATOR: É isso.
HAMMATRIZ: A cada um sua especialidade. (Pausa) Alguém telefonou? (Pausa) A gente não ri?
CLOVATOR: (depois de refletir) Não tenho vontade.
HAMMATRIZ: (depois de refletir) Nem eu. (Pausa) Clov.
CLOVATOR: Fale.
HAMMATRIZ: A natureza nos esqueceu.
CLOVATOR: Não existe mais natureza.
HAMMATRIZ: Não existe mais! Que exagero!
CLOVATOR: Nas redondezas.
HAMMATRIZ: Mas nós respiramos, mudamos! Perdemos os cabelos, os dentes! A juventude! Os ideais!
CLOVATOR: Então ela não nos esqueceu.
HAMMATRIZ: Mas você disse que não existe mais natureza.

Alguém bate com força na porta de fora do teatro, querendo entrar. A ATRIZ interrompe-se, não podendo acreditar que alguém seja capaz de importuná-la. Desce do palco, vai até a porta e abre-a, impaciente. Surge, então, impassível, um imenso animal inflável, desses de piscina. Segundos. Dramáticos. A ATRIZ fecha a porta, brusco, ocultando o dito animal. A ATRIZ volta para o palco e continua o texto com seu insuspeito interlocutor. Personagens beckettianos trocados.

CLOVATRIZ: (triste) Nunca ninguém pensou de modo tão tortuoso como nós.
HAMMATOR: A gente faz o que pode.
CLOVATRIZ: Fazemos mal.
(Pausa)
HAMMATOR: Você se acha o tal, hein?
CLOVATRIZ: O próprio.

Findo o diálogo, a ATRIZ fecha a pequena caixa.

No canto do palco, ao lado do ATOR, acende-se um abajur. Daqueles abajures de três tempos, do Paraguai. Acende, acende mais, acende mais um pouco, apaga. Acende, acende mais, acende mais um pouco, apaga. Várias vezes repetidas. Ao lado do abajur, um boneco inflável, cheio apenas pela metade. Jogado, imóvel. Como que a dialogar insolitamente com o ATOR. Pisca junto com a luz. A luz pára por um momento na intensidade mais alta. Pausa dramática. O ATOR olha o boneco e sorri, levemente. Pausa. A ATRIZ vai até o abajur e toca-o, apagando a luz.

(CENA DO CORAÇÃO DE LUZ.)

O som continua. A ATRIZ vai até a mesa e acende a lâmpada. Na mesa, apenas uma grande caixa, igual à pequena caixa, aumentada. Abre a grande caixa com cuidado. Saem da caixa imensas flores artificiais. Pássaros. Riacho. A ATRIZ sorri intensamente. A luz some aos poucos. O som pára. Fim.


FIM




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